Maternidade na quarentena.
Muita gente escrevendo sobre esse
tema e salientando seus desafios e aprendizados. Eu já li muitos textos e
também refleti muito sobre o assunto, sendo mais uma mãe nesse momento caótico
pelo qual estamos passando.
Eu sou uma das mães que está
aproveitando o lado positivo de estar em casa com minha filha, algo que eu
jamais faria por opção, por inúmeras razões, mas cujos benefícios são realmente
incontáveis.
Inquestionavelmente sofro os impactos
de muitas demandas concomitantes e da dificuldade de atender a todas de forma
plenamente satisfatória, e certamente me sinto sobrecarregada em muitos
momentos, mesmo tendo com quem dividir algumas das minhas cargas.
Contudo, eu não tinha ainda pensado
sobre os reflexos da maternidade na quarentena em termos sociais. Não até ler o
texto da Renata Corrêa* e perceber como é simples retroceder e desestruturar
anos de avanços em milésimos de segundos.
“Não é culpa das mães ver os filhos
uma hora por dia quando estão trabalhando e tampouco não é lindo e romântico e
nem é amor que toda carga de cuidados com as crianças na quarentena seja das
mulheres. Num contexto onde as pesquisas mostram que o o homem jovem é o grupo
social que mais desrespeita as normas de saúde pública furando a quarentena, é
interessante observar como a maternidade está sendo documentada durante a
pandemia: a quarentena como um sonho realizado para mães e crianças, as
mulheres confinadas de volta ao lar, ao seu lugar de origem, a domesticidade e
a maternidade como a mais nobre, importante e mais que isso, única função que a
mulher deve cumprir na sociedade.”
O texto não é uma crítica aos pais,
mas uma leitura da forma como a responsabilidade pela criação dos filhos e
pelas tarefas domésticas recai naturalmente sobre as mulheres, do ponto de
vista geral.
E isso não é algo exclusivo aos
homens. As próprias mulheres assumem essa responsabilidade de forma natural,
mesmo que não sem reclamação ou sobrecarga.
Existe uma herança histórica,
cultural e social enraizada em nós enquanto sociedade que reaparece de forma
natural em momentos como este, quando assumimos papéis que são esperados de nós
ao invés dos papéis que realmente queremos desempenhar.
As cobranças externas se acumulam às
cobranças internas e resultam em expectativas impossíveis de atingir. Pior que
isso, a herança do que as perspectivas com relação aos papéis dos homens e das
mulheres pode gerar após esse período é entristecedora.
Um levantamento do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), de 2016, apontou que as brasileiras
realizam o dobro de trabalhos não remunerados (domésticos, cuidados com os
filhos, por exemplo), do que os homens, mesmo realizando cargas de trabalho
remunerado semelhantes, relação desigual que tende a aumentar com o isolamento
social.
Essa assunção de papéis por homens e
mulheres, que é tida como inata, na verdade não está associada ao gênero, e
sim aos diferentes tipos de temperamento, dons e talentos de cada
indivíduo inserido em culturas diferenciadas.
Em muitas culturas não há ou havia
distinção das atribuições pelo gênero. Nós estamos apenas reprisando o modelo
das culturas europeias, como apontou Camila
Pires Garcia em um artigo sobre a paternidade participativa**.
Isso é incentivador. Pois, se estamos
seguindo um modelo de divisão de tarefas típico das sociedades europeias
modernas, é possível romper esse modelo e desenvolver um modelo novo e mais
satisfatório para atender às necessidades atuais e futuras.
A masculinidade nociva, praticada
pela sociedade como um todo, e por homens e mulheres individualmente, precisa ser rompida, e se nós enquanto
sociedade ainda estamos longe de efetivar esse rompimento, cabe a nós enquanto indivíduos esclarecidos
atuar ativamente em direção a esse rompimento.
Desempenhar a paternidade ativa e
participativa na quarentena pode ser uma possibilidade de reinvenção para os
pais e transformação masculina, cujos benefícios serão incontestáveis.
“ [...] um dos fatores apontados como
desencadeador de mudança é a vivência do cotidiano com filhos no ambiente
privado. Para as famílias que têm condições de ficar em isolamento social, vale
aproveitar este momento para ressignificar algumas coisas, dentre elas a
paternidade. Nesse sentido, o diálogo voltado para os aprendizados relacionados
a paternidade participativa podem ajudar a definir uma nova
perspectiva familiar.”
Mas não são apenas os homens que
precisam operar essas mudanças nas suas rotinas. As mulheres também precisam
permitir que essa mudança ocorra, pois muitas vezes são elas que impedem uma
verdadeira evolução no ambiente familiar e doméstico, seja por necessidade de
controle, por manter uma sensação equivocada de ser necessária e
insubstituível, por machismo, por imposição própria ou alheia, por comodismo ou
inúmeros outros motivos.
O momento é caótico, mas também
propício para certas observações e diálogos, que são o caminho para a evolução,
pelo menos no âmbito familiar. Pequenas mudanças no seio familiar podem
implicar em grandes mudanças na forma de enxergar a divisão de tarefas e os
papéis de homens e mulheres enquanto família, que pode estender-se de forma
natural para o âmbito social.
Claro que não são apenas as tarefas
que precisam de divisão. A carga mental, que é às vezes mais opressora do que
as próprias tarefas, também precisa ser descarregada e dividida, da forma mais
igualitária possível, entre parceiros de convivência. E isso pode incluir
também filhos mais velhos, que já tenham capacidade de participar de algumas
tarefas e ocupar-se não só da sua realização, mas organização e preparação
também.
Incluir os filhos nas tarefas
domésticas, apropriadas para a idade e com foco no aprendizado, mais do que no
objetivo final, também é uma excelente forma de educar a respeito do papel de
cada um dentro do lar e da família, e plantar uma semente para o futuro,
criando futuros homens e mulheres participativos, proativos e conscientes.
Não existe fórmula mágica, atalhos e
receitas para mudar anos de uma cultura que atribui às mulheres as atividades
domésticas e o cuidado primordial com os filhos. É um longo caminho a percorrer
para mudar essa perspectiva. Mas como toda grande jornada começa sempre com o
primeiro passo***, este pode ser o momento propício para darmos um passo
inaugural importante em direção a este novo caminho. Promovendo verdadeira
igualdade entre homens e mulheres naquilo que são iguais, preservando
tratamento diferenciado naquilo em que são desiguais e merecem proteções
diferentes e específicas.
Não é porque estamos em confinamento
que não podemos começar a caminhar, ainda que seja uma caminhada simbólica.
** https://gptw.com.br/conteudo/artigos/paternidade-na-quarentena/
***Buda
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