Três meses se passaram desde a
morte de George Floyd nos Estados Unidos, estopim do movimento Vidas Negras Importam, que nós
brasileiros importamos para nossos perfis nas redes sociais, cobrindo-os de
preto com as palavras VIDAS NEGRAS IMPORTAM, ou ainda da forma mais
americanizada, BLACK LIVES MATTER.
Três meses se passaram e agora
nossos feeds, stories e perfis não refletem mais a mesma indignação. Afinal, o
assunto do momento agora é outro.
A empatia geral pelas mortes de negros
americanos, às quais mortes de negros brasileiros, que ocorreram no nosso
próprio quintal, se juntaram momentaneamente, foi, como tudo entre nós
brasileiros, efêmera, transitória e superficial.
Assim como nossas manifestações
contra os equívocos do governo Dilma se esgotaram no momento em que ela sofreu
o impeachment, como se todos os problemas políticos do momento se resumissem à
figura da então Presidente da República. E no momento em que assumiu o novo
presidente, a cada semana nos insurgimos contra o assunto da moda, como se os
problemas do Brasil não fossem sistêmicos e estruturais e se abreviassem a
meros erros de discursos.
Os discursos do Presidente Jair
Bolsonaro conseguiram superar os discursos sem nexo e estapafúrdios da antiga
Presidente Dilma, que queria estocar vento e comungar a mandioca com o milho,
pois os discursos dela eram apenas desconexos, os de Bolsonaro são perigosos,
especialmente diante de uma pandemia mundial, em que ele além de desmerecer e
debochar das instruções dos seus próprios ministros da saúde – existe esse
cargo ainda?! – manifesta opiniões no mínimo assustadoras e desprovidas de
qualquer lógica ou consideração com os seres humanos, colocando em risco
diversas vidas e o próprio sistema de saúde cujo colapso se tenta evitar com o
isolamento social.
E assim, seguimos nos
manifestando contrariamente aos discursos, da mesma forma transitória e
superficial que nos manifestamos contra a morte de George Floyd e o racismo em
geral.
No Brasil temos 54% da população
de negros e pardos, com uma taxa de homicídio quase três vezes superior para
jovens negros do que jovens brancos, e mesmo assim só ingressamos no levante
contra o racismo quando os americanos rechearam suas redes sociais de
manifestações, nos unindo a uma luta externa quando temos uma luta gigante
ocorrendo do lado de fora da nossa porta.
O racismo no Brasil é tão
histórico, cultural e estrutural, que só nos damos conta da existência dele
quando ele acontece fora do nosso país. Afinal, nós não somos racistas. Por
isso fica fácil unir-se a uma luta externa, contra algo que está acontecendo do
outro lado do mundo, porque nós estamos isentos dessa responsabilidade.
Esse é o motivo de hoje, três
meses depois do grande levante americano, apoiado por inúmeros brasileiros, o
assunto ter se esgotado sem qualquer discussão legítima e essencial com vista a
efetivamente tratar o problema e buscar soluções.
No Brasil, nós romantizamos a
história da escravidão e da desigualdade entre brancos e negros. Nossos heróis
na luta contra a escravidão são brancos, e não os milhares de negros cujas
vidas foram exploradas de todas as formas possíveis. Nós não conseguimos
entender o sofrimento, a humilhação, a falta de humanidade dessa história,
porque a observamos de forma afastada, narrada por figuras alheias a esses
sentimentos, e jamais conseguimos realmente nos apropriar dessa história que é
nossa, que é recente, e cujos reflexos permanecem até hoje.
Não conseguimos compreender que
insurgir-se contra o racismo é uma conduta diária e não se resume apenas a
postar palavras de guerra nas redes sociais. O racismo está enraizado em nós de
forma tão profunda, tornando-o um problema estrutural, que não irá jamais ser
resolvido por medidas superficiais.
As manifestações efêmeras nas
redes sociais só indicam que estamos muito longe de chegar a um lugar mais
isonômico em termos de direitos e condições de acesso a negros. Elas demonstram
que não nos conectamos com essa causa, que não nos sentimos parte dela, que ela
é apenas um tema para nós. O racismo é apenas um assunto que sabemos que
existe, mas parece alheio a nós, porque nós não somos racistas. Nós não somos
responsáveis pelas dificuldades dos negros. É o governo quem tem que resolver
os problemas de acesso a direitos individuais e sociais aos negros.
E por pensar dessa forma, por
excluirmos nossa própria responsabilidade, nós geramos um problema sistêmico e
estrutural, cuja solução se torna impossível.
A escravidão baseava-se
primordialmente na premissa de que os negros escravos não eram seres humanos, mas
mera mercadoria, propriedade de outros, e isso servia como justificava para
todos os tipos de maus tratos e violações perpetradas pelos seus algozes
proprietários.
Ainda hoje essa premissa se
mantém viva, na medida em que existe uma relação de inferioridade/superioridade
entre negros e brancos, na medida em que valoramos de forma diferente as
pessoas com base na cor da sua pele. Essa premissa justifica a enormidade de
diferenças de tratamento entre brancos e negros e mantém vivo o racismo na
nossa sociedade.
"O ódio racial
envenena o ar a nossa volta e intoxica, sufoca e asfixia cada um de nós e toda
a nação. O racismo subverte os princípios da dignidade humana e cria,
justifica, naturaliza e reproduz o sentimento de superioridade e inferioridade
entre os indivíduos em razão raça e da cor da pele. O preconceito e a
discriminação racial mata inocentes, destrói sonhos e interdita possibilidades.
Subverte e deslegitima os propósitos da república, desqualifica e fragiliza os
fundamentos da democracia, corrói e corrompe a confiança, a solidariedade e a
fraternidade social. Mantém negros e brancos separados e desiguais".
(Manifesto “Vidas
Negras Importam”, Universidade Zumbi dos Palmares e a Afrobras, com apoio da
Agência Grey)
Precisamos enfim encarar a realidade
de que somos todos racistas, para então podermos começar a desconstruir essas
premissas que nos foram incutidas por gerações, tanto no individual como no
coletivo, e começar um longo processo em direção à erradicação do racismo.
Porém, isso não irá acontecer sem
consciência, conhecimento, educação, empatia e principalmente sem admitirmos
nossa parcela de culpa diária na manutenção do racismo. Precisamos enfim
enxergar uns aos outros como iguais, seres humanos com a mesma essência,
independente das nossas milhares de diferenças.
Precisamos realmente absorver o
impacto da segregação, da discriminação, da escassez de oportunidades e falta
de acesso aos direitos individuais e sociais, não como algo alheio a nós, mas como algo que
pertence a nós e que faz parte do nosso cotidiano, que nos diz respeito,
independentemente da cor da nossa pele.
A luta contra o racismo não é apenas
dos negros. É de todos nós, seres humanos. E somente quando realmente
absorvermos essa ideia, admitirmos nossa responsabilidade e incorporamos ações
diárias no combate ao racismo é que nossas manifestações deixarão de ser
efêmeras e passarão a ter real significado e impacto.
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/06/30/campanha-lanca-manifesto-vidas-negras-importam-e-propoe-10-metas-para-reduzir-impacto-do-racismo.ghtml - Proposta de metas para reduzir o impacto do racismo
https://blmbr.carrd.co/ - O que pessoas não-negras devem fazer para espalhar e respeitar o movimento
Excelente comentário, expressando de maneira contextualizada uma situação bem real.
ResponderExcluirObrigada!
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