Este livro chegou até mim através de uma colega de trabalho, na nossa biblioteca compartilhada (muitas leitoras no ambiente de trabalho dividindo e compartilhando livros numa ideia sustentável e econômica), e ela me avisou que era uma leitura bastante angustiante, mas muito válida. E tinha razão!
Esta leitura é de extrema relevância, especialmente no momento atual, em que é necessária uma reflexão sobre desigualdade social e racial, humanidade e empatia, e esse livro propicia uma verdadeira imersão na cultura nigeriana, nas questões sociais, raciais e religiosas, e por ser tão real é completamente angustiante.
Não é possível dizer que esta seja uma leitura tranquila. Pelo contrário. É bastante tensa e durante o livro inteiro o viajante fica sobrecarregado de emoções e ansiedade, enquanto tenta desvendar a realidade nas entrelinhas da narração de Kambili, a adolescente protagonista desta história.
O livro conta a história de Kambili e sua família na Nigéria atual, em que são privilegiados por serem uma das poucas famílias abastadas do local. Kambili narra a história de sua família enquanto apresenta um panorama real e impactante sobre a situação do povo nigeriano e os conflitos religiosos e políticos do país, mostrando os remanescentes invasivos do país e de todo o continente africano.
Kambili revela, aos poucos e de forma muita dualista e aflitiva, a figura do pai, Eugene, um famoso industrial nigeriano, fervoroso católico, com uma religiosidade extremamente “branca”, e um pavor às tradições primitivas do povo nigeriano, tamanho que o faz afastar-se de seu pai e da irmã, professora universitária esclarecida, e como ele inferniza, tortura e destrói lentamente sua família, justificando suas ações em sua fé.
Ao mesmo tempo em que Eugene é rígido com sua família a ponto de perpetrar torturas físicas nos filhos e na esposa, ele é um benfeitor dos pobres e apoiador do jornal progressista do país, tudo a causar uma profunda opressão psicológica e emocional nos filhos.
A vida tortuosa de Kambili e seu irmão Jaja felizmente recebe um alento de esperança quando eles vão visitar a tia Ifeoma e os primos Amaka, Obiora e Chima, na cidade de Nsukka, onde a tia é professora universitária.
O contraste entre a educação que Ifeoma dá aos filhos, ensinando-os a pensar por si mesmos e criando-os com liberdade, e a relação familiar rígida e punitiva de Kambili e Jaja em Enugu, sob o olhar constante e crítico do pai, provoca Kambili a questionar a violência, o machismo e o patriarcado ao qual é submetida, especialmente ao perceber como sua prima Amaka, que tem a mesma idade que ela, parece muito mais madura e corajosa, fortalecida pelo encorajamento da mãe em expressar suas opiniões.
Kambili passa a ser inspirada pela independência da tia e da prima, bem como começa a compreender a religião de uma nova forma, inspirada por sua relação com o padre Amadi, por quem acaba desenvolvendo uma paixão e admiração, que consegue aliar a fé cristã à realidade nigeriana, e pelo convívio com seu avô, que mantém vivas as antigas tradições nigerianas.
Durante toda a narrativa de Kambili sobre sua vida e suas percepções da realidade que a cerca, o viajante fica angustiado pela tortura emocional a qual ela e o irmão são submetidos e nutrindo uma esperança e expectativa quase utópicas quanto a uma possível reviravolta na vida dos dois, desejando que eles consigam se libertar das amarras doentias do pai, tanto físicas quanto psicológicas, e possam assumir o controle de suas próprias vidas.
O final é surpreendente e agridoce, num misto de alívio e tristeza, esperança e resignação, pois esta é uma história real demais para fornecer um simples final feliz. Contudo, a obra atinge o objetivo a que se destina, trazendo uma narrativa verdadeira onde é possível se inserir na realidade histórica e cultural nigeriana, em seus costumes, culinária, vestimenta e linguagem.
Além disso, a descrição detalhada dos cenários que cercam Kambili, misturada com a minuciosa exposição do contraste tortuoso dos sentimentos da protagonista, refletidos na forma figurada que ela detalha as impressões que os lugares causam nela, enquanto duela internamente em seu profundo dilema entre agradar o pai e questionar suas atitudes severas, transportam o viajante para um mundo real e angustiante.
Faça as malas e embarque em uma viagem aflitiva por esse clássico necessário ao lado de uma personagem extremamente real e virtuosa, em uma excursão histórica e cultural pela Nigéria contemporânea.
Vamos viajar?
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