A TRILOGIA DAS TRILOGIAS

O TEMPO E O VENTO – ÉRICO VERÍSSIMO



Uma aula de história do Rio Grande do Sul e do Brasil, romantizada por personagens femininas fortes e potentes na história da literatura, narrando 150 anos de história divididos em três livros: O Continente, O Retrato e O Arquipélago.

Cada parte desta épica e famosa trilogia comportaria uma resenha à parte, tamanha é sua importância histórica e literária, mas vou tentar ser o menos prolixa possível para apresentar um panorama geral sobre a obra completa, sem ser superficial.

O Continente, publicado em 1949, começa em meio à Revolução Federalista, e a família Terra Cambará está sitiada no casarão na cidade de Santa Fé, e a matriarca da família, a velha Bibiana, perdida nos devaneios do passado, começa a lembrar da história de sua avó Ana Terra. Ela viaja de volta ao passado e retorna ao sítio de 1895, criando uma verdadeira viagem psicológica no leitor. Mas não se preocupe, você não ficará perdido nas alternâncias de épocas entre os capítulos, e logo vai se acostumar a viajar nas memórias da Dona Bibiana.

“Sempre que me acontece alguma coisa importante, está ventando.”

Ao lembrar da avó Ana Terra, somos apresentados a uma mulher forte e determinada, que encontra um índio ferido perto de um poço, Pedro Missioneiro, que acaba por ser abrigado pela família Terra, e se envolvendo com Ana, que acaba ficando grávida.

Deste ponto em diante a tragédia de sua vida tem início, quando seu pai e irmão, em defesa de sua honra, matam Pedro, deixando órfão o filho não nascido de Ana, e gerando nela uma profunda dor e ódio pelas condições que lhe são impostas.

Noite de vento, noite dos mortos…’’

As provações de Ana estão apenas começando, pois alguns anos mais tarde, os castelhanos invadem a fazenda da família, assassinam seu pai e irmão, e Ana somente tem tempo de agir no mais profundo instinto de sobrevivência, escondendo a cunhada, seu filho e sobrinho, e, fingindo ser a única mulher da casa, se entrega voluntariamente à sanha dos bandidos.

Apesar da intensidade e violência da barbárie sofrida por Ana, ela sente-se purificada de seu pecado original e reconciliada com a vida, vendo a fazenda da família, que também fora sua prisão, destruída e seu pai e irmão, que também foram seus algozes, mortos. Após perceber que sua cunhada e as duas crianças estão a salvo, ela aceita o convite de um forasteiro para migrar com sua família para uma nova cidade, onde havia oportunidades e um presságio de paz.

Ana e a família chegam a Santa Fé, que será o cenário da vida e luta dessa família pelos próximos livros, e vê seu único filho partir para a guerra contra os castelhanos. Seu filho retorna vivo da guerra e algum tempo depois Ana faz o parto de sua neta, Bibiana.

‘’Mais uma escrava’’

Bibiana cresce ouvindo as frases enigmáticas e emblemáticas de sua avó, e vendo-a trazer ao mundo as crianças de Santa Fé, com sua velha tesoura enferrujada, e se torna uma linda jovem, cobiçada por Bento Amaral, filho do coronel Ricardo Amaral, a mais alta patente de Santa Fé.

Entra em cena, então, um certo capitão Rodrigo Cambará, que retrata caricaturalmente a imagem do homem gaúcho forte, bravo, destemido e fanfarrão, que arrebata o coração da jovem Bibiana com seu charme, e ela decide casar-se com ele, mesmo sabendo que seu futuro será incerto.

"– Buenas e me espalho! Nos pequenos dou de prancha e nos grandes dou de talho!
– Pois dê.”

A união dos Terra e dos Cambará marca a formação do Estado do Rio Grande do Sul, e o antagonismo entre Juvenal Terra, irmão de Bibiana, e Rodrigo Cambará, demarca a construção emocional dos personagens e cria um cenário de divertimento, mesmo em meio a tanta história e tantas guerras.

O Capitão Rodrigo é tão carismático e fanfarrão que se torna impossível não ser cativado por ele, mesmo diante de tantas imposturas suas com relação à sua amada Bibiana, e é nítida sua inquietude em se estabelecer na pacata cidade de Santa Fé e criar raízes, e ainda que não justifique suas ações, mantém o viajante ao seu lado até a sua prematura e sofrível morte no casarão dos Amaral, atingido pelas costas pelo seu rival Bento Amaral.

A segunda parte do Continente traz o viajante de volta ao ano de 1895 e ao Sobrado, onde a família Terra Cambará, liderada por Licurgo, neto de Rodrigo e Bibiana,  está sitiada, enfrentando além do cerco dos inimigos a escassez de alimentos e a agonia de Alice, esposa de Licurgo, durante o parto de sua filha, enquanto seus outros filhos são cuidados pela criada Laurinda, e sua irmã, Maria Valéria, outra forte personagem na trama, auxilia a irmã e pressiona Licurgo, por quem nutre um amor secreto, para tomar importantes decisões quanto ao desfecho do sítio.

Mas antes de desvendar o desfecho do cerco, Bibiana carrega o viajante por mais memórias de sua vida sofrida, voltando alguns anos para quando seu filho Bolívar, jovem adulto, casa-se com outra importante personagem feminina desta trilogia, a atormentada Luzia Cambará, levando o viajante para a construção do Sobrado e pela tortuosa vida de Bolívar, guiados pelo curioso personagem do médico alemão Carl Winter.

Neste capítulo o leitor se afeiçoa cada vez mais à figura centrada e imponente de Bibiana, que assume os cuidados com o neto enquanto a nora Luzia, atormentada e destemperada, exerce loucuras e exageros motivada por seu ódio de tudo que a cerca, inclusive do marido, a quem tortura de inúmeras maneiras.

Na sequência, seguimos os caminhos de Licurgo, que herdou a personalidade vívida do avô, enquanto cresce no meio da tensão e rivalidade entre sua avó e sua mãe, e vive um romance proibido com Ismália Caré, filha dos empregados do Angico, que se estende mesmo depois do seu casamento com a prima Alice.

Licurgo é forte e determinado, como o avô, e por influência do melhor amigo, Toríbio Rezende, torna-se abolicionista e funda um clube republicano em Santa Fé, vindo a se tornar governante de Santa Fé, por voto livre, intensificando sua rivalidade com a família Amaral, e acabando por ser atacado pelos maragatos durante a Revolução Federalista, disputa entre chimangos e maragatos, mas também luta pessoal entre os rivais Terra-Cambará e Amaral.

Aqui entra em cena outra forte personagem feminina, Maria Valéria, e seu dilema emocional, ao abdicar da própria felicidade, deixando de revelar seu amor pelo primo Licurgo, acatando a decisão da Dona Bibiana de casá-lo com a outra sobrinha, Alice. E ela segue a vida à sombra da irmã, até a sua morte, na tomada do sobrado, no final do Continente, vindo a assumir o papel de Bibiana no próximo livro, O Retrato.

O Retrato, segundo livro da trilogia,  segue contando a história dos Terra-Cambará, agora tendo como pano de fundo a virada do século XIX para o século XX, através do personagem de Rodrigo Cambará, bisneto do capitão e de Bibiana, que retorna a Santa Fé, formado em medicina, modernizado e com novas ideias e ideais, e revelando a decadência social de Santa Fé na passagem para o século 20, causada por interesses e jogos políticos.

Este livro é bastante cansativo em relação ao anterior, pois tem uma narrativa mais lenta e muito menos da ação das guerras do livro anterior, e a figura do bisneto do capitão não cativa tanto quanto o Rodrigo original, mesmo que apresente o mesmo espírito aventureiro e a apreciação pelas mulheres.

Este livro é marcado pelo início da República, as eleições cheias de falcatruas, a corrupção, e importantes fatos históricos da época, como a campanha civilista, o governo de Hermes da Fonseca, o princípio da Primeira Guerra Mundial e o assassinato de Pinheiro Machado.

A trilogia se encerra em O Arquipélago, que segue a história de Rodrigo Cambará ao retornar à Santa Fé depois de passar muitos anos no Rio de Janeiro ao lado do então presidente Getúlio Vargas, seu amigo e aliado, e a deterioração da família, simbolizada pelo Sobrado, encerrando a saga da família Terra-Cambará em silêncio absoluto e profundo decorrente do distanciamento dos antigos valores e da falta de comunicação e entendimento entre os membros da família.

Acompanhamos, ao final, o dilema emocional de Rodrigo, derrotado politicamente e doente, após o fim do Estado Novo, lutando consigo mesmo para não morrer na cama, uma vez que “Cambará macho não morre na cama”.

O regionalismo, a tradição, as lutas, a história regional e nacional, a ficção entrelaçada aos fatos, a coragem, a fibra dos personagens, a evolução emocional e psicológica dos protagonistas da saga desta família tipicamente gaúcha superando desafios e angariando conquistas e derrotas ao longo de gerações, fazem desta a TRILOGIA DAS TRILOGIAS, e merece uma leitura dedicada!

É digno de destaque num período, e numa obra que retrata de forma belíssima e fiel este período, em que os homens – fortes, valentes, machistas e apaixonados pela terra - possuíam o grande destaque, governando, administrando, peleando nas guerras, deixando para trás suas mulheres, que pouca importância tinham no desfecho das importantes decisões, que são as mulheres nesta trilogia que realmente triunfam com sua força.

Esta trilogia traz o empoderamento feminino antes dessa expressão surgir. 

A força feminina é se suma importância nesta obra, e são as mulheres que conduzem o destino dos homens, de forma singela, tênue e quase silenciosa, primeiro com Ana Terra, descrita por Érico Veríssimo como “espécie de sinônimo de mãe, ventre, terra, raiz, verticalidade, permanência, paciência, espera, perseverança e coragem moral”, que carrega seu filho para uma nova vida, impulsionando-o a se tornar um homem forte, honrado e justo.

Depois por Bibiana, a grande matriarca desta família, que suporta tantas dores em razão de seu amor pelo Capitão Rodrigo, que lhe trouxe a mesma quantidade de alegrias e sofrimentos, e não titubeia após sua morte em manter seu filho, e depois seu neto, no caminho da honra e da justiça, impedindo que ele desista de lutar por seus ideais, mesmo quando a esperança parece perdida.

E por fim, por Maria Valéria, que mantém viva a memória guerreira de Ana Terra e imponente de Bibiana, orientando e guiando os irmãos Rodrigo e Toríbio através dos anos e de novas lutas após a morte dos pais, tendo abdicado de sua felicidade ao lado do seu amado Licurgo para fazer a vontade da tia Bibiana e preservar a felicidade da irmã Alice, vivendo às sombras desta e, ao final, assumindo seu papel diante da sua morte.

São tantas nuances que este romance histórico possui que é difícil fazer uma resenha miúda que seja digna de sua relevância e também da memória afetiva que tem para mim, quando líamos um certo capitão rodrigo em família no entardecer de um verão há muitos anos no nosso “sobrado”, que uniu gerações da minha família.

Recomendo profundamente fazer as malas gaudérias e embarcar nesta aventura épica, histórica, tradicionalista, romântica, angustiante e incrivelmente maravilhosa ao lado de personagens de extrema relevância e intensamente cativantes e ser agraciado por uma aula interativa de história e por uma narrativa de grande proeminência literária!

Vamos viajar?


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